24/09/2007

'Eu poderia ter tido classe. Eu poderia ter sido um lutador. Eu poderia ter sido alguém, ao invés do vagabundo que sou'
Marlon Brando, em Sindicato dos Ladrões

e a chuva promete não deixar vestígios... 4 da matina, insone

Titulo da Música: Check Up
Artista:Raul Seixas
Letra:

Acabei de dar um check up
na situação
o que me levou a re-ler Alice no País das Maravilhas
Ja chupei a laranja mecânica
e lhe digo mais
Plantei a casca na minha cabeça
Acabei de tomar meu Diempax, meu Valium 10 e outras pílulas mais.
Duas horas da manha, recebo nos peito um Triptanol 25 e vou dormir quase em paz.

E a chuva promete nao deixar vestigio.
E a chuva promete nao deixar vestigio.
E a chuva promete nao deixar vestigio...

14/09/2007

BUKOWSKI - O BÊBADO GENIAL

SPLASH

A ilusão é de que você está simplesmente
lendo este poema
a realidade é que isto é
mais que um
poema.
isto é o canivete de um mendigo
isto é uma tulipa
isto é um soldado marchando
através de Madrid.
isto é você em seu próprio
leito de morte
isto é Li Po rindo
lá embaixo
isto não é a porra de um
poema.
isto é um cavalo adormecido
uma borboleta em
sua mente
isto é o circo do
demônio
você não está lendo isto
numa folha
a folha está lendo
você
pode sentir?
é como uma serpente. é uma águia esfomeada rodando pela sala

isto não é um poema. poemas são chatos
fazem você dormir

estas palavras forçam você
a uma nova
loucura

você foi abençoado, você foi atirado em uma
cegante área de
luz

o elefante sonha
com você
agora
a curva do espaço
se dobra e
gargalha

você pode morrer agora
você pode morrer agora como
todas as pessoas deveriam
morrer:
grandes,
vitoriosas,
escutando a música,
sendo a música,
retumbando,
retumbando,
retumbando.

12/09/2007

6 e quinze da matina de uma quarta feira qualquer

Às vezes, sinto uma vontade enorme de me matar. Vontade tão intensa quanto a vontade de tomar um sorvete.
Acabo não satisfazendo nenhuma vontade nem outra.
Mas juro que por vezes imagino a lâmina da faca cortando meu pescoço.
Não me sinto motivado para nada, nem mesmo para o suicídio, quanto mais para a vida. Isso me incomoda.
Meu casamento é frio. Serão todos casamentos frios?
Sinto como se meu peito se enchesse de nuvem escura. Núvem de desassossego, núvem de tempestade que nunca cai, só esconde o sol. Quem dera ao menos chovesse em mim!!!
Hoje levantarei e visitarei meus clientes com a mesma alegria que um robô sente ao ser ligado para cumprir seu papel em qualquer linha de montagem, hoje passearei com o cão e cuidadrei do peixe (maldito peixe que não come!), hoje me arrastaree pelo dia sem objetivo traçado. Hoje vagarei errante pelas horas. E de noite não sentirei alegria nem tristeza. Nem medo, nem recompensa.
Tenho vontade de cortar os pulsos, de marcar a pele com a faca. Fazer cortes fundos no braço, no peito, no pescoço. Mas não tenho coragem. Não tenho saco de me cortar e ter que limpar o sangue.
Tenho pensado em colocar a cabeça no forno e ligar o gás. Funciona? Demora pra morrer?
Não quero sentir o mal estar que senti quando tentei me asfixiar, é ruim, tão ruim que você acaba desistindo.
Gostaria de algo rápido. Algo me me fizesse simplesmente desaparecer.
Vupt! Acabou...

10/09/2007

Belinha

Dizem que sempre falta uma palavra e é verdade. Nesses anos todos eu sei que sim, que sempre falta uma palavra, é verdade. Verdade. Pois procurei por Belinha, depois de 50 anos, 50 anos, para dizer para ela essa palavra. Sempre falta uma palavra, verdade verdadeira. E eu fui para dizer para Belinha essa palavra.

Vesti meu terno, pus o chapéu e saí. Saí, foi. Como nos tempos em que era moço, feliz. Nos tempos em que me apaixonei por ela. Eu nunca pensei que um amor assim pudesse me deixar perdido, quase louco. Amor grande. Amor para sempre. Pois é. Vesti meu terno, pus o chapéu e peguei um ônibus até Santo Amaro. Sentou-se uma moça ao meu lado e era uma moça bonita. Ah, e o perfume era muito bom e eu conversei com ela, conversei muito com ela, muito, até chegar à casa pr'onde eu ia. A casa que vi construída. Que vi, tijolo por tijolo. Eu nunca morei nela, mas era lá que Belinha morava, casada com outro. Que teve filhos e teve netos. Que vive hoje sozinha e que nem sabe que eu vou lá, entrar naquela casa, que vou dizer o que tenho pra dizer, depois de 50, 50 anos, que sempre falta uma palavra. Uma única palavra, que vou levando com meu terno e meu chapéu. E uma agonia no coração, profunda. Profunda. Que sempre falta uma palavra. Era agora.

Desci no mesmo ponto e o ônibus se foi. E o bonde se foi, não tem mais. Nem a paz daquela rua. Só reconheço a esquina em que eu ficava, no bar, entre um café e outro, a ver a felicidade de Belinha, a casa agitada, os filhos pela calçada. Dei balas e brinquedos para eles, escondido, que ela nunca me via. Ficou um mistério, foi. Mas, no fundo, no fundo, Belinha sabia quem era. Eu tenho certeza, não me engano. Ela sabia que eu é que dava balas e brinquedos, escondido, nunca a abandonei, nunca deixei a vida dela sozinha. Que meu amor era eterno. Mas hoje ela vai ficar sabendo de uma vez. Eu vou dizer a palavra que eu guardei, que ficou engasgada durante 50, 50, 50 anos. Nos olhos de Belinha, é. Pra ela saber. Saber de uma vez o que eu quero dizer, depois de 50 anos.

O portão é amarelo, meio aberto. Há cheiro de jasmim, o mesmo cheiro, Meu Deus. A parede é amarela e meio aberta. A mesma parede. Eu fui invadindo, decidido como nunca. Mas eu sempre fui decidido. Fui moço forte, fibrento, de briga. No trabalho e na vida. Meu pai era assim e me ensinou. Mas o problema, posso dizer: foi ela. Belinha me deixou lento, sem força nenhuma. Sem decisão pra resolver aquela situação. Eu a amava tanto, ela me amava tanto e casou com outro. Na minha cara, na frente do meu nariz. Casou por vingança, não sei. Por dinheiro, não sei. Por indecisão. Porque quis fazer outro destino. Foi o fim, o começo do meu desasossego. Fiquei inseguro, fraco, acabado de tudo. Meu fim, tão moço que era. Minha morte no mundo.

Bati frato na porta, assim. Fraco. Mas não demorou muito para eu pensar em bater com todos os meus nervos na porta. E sacudir o nome dela. E tirar o chapéu porque eu havia suado muito. Um sol de muito tempo. Um sol antigo. Meu chapéu é quente. Meu chapéu e meu terno. O mesmo terno quente.

Disse o seu nome lá pra dentro. A casa escura, sem abrir. "Belinha", como sempre tive vontade de dizer. Não gritei, só disse. Estava ali para dizer a palavra que faltava, que sempre falta uma palavra depois de 50, mais de 50 anos.

Ela, ela.

Ela veio rastejando até a porta. Rastejando a sombra dos chinelos. Cansada e sozinha que ela estava. Veio e me olhou. Demorou olhando para mim. Olhou, olhou e me viu. O mesmo chapéu e o mesmo terno e o mesmo sol. Foi aí que Belinha me abraçou, abraçou. Meu Deus, Belinha me abraçou, me fechou naquela casa. Trancou. E era agora como nunca foi. Como nunca mais será. Uma palavra que ficou em mim, envelhecida e tratata. Pois é. Tratada como num coração de formol. De forma que resolvi dizê-la, ali mesmo da porta, sem entrar, não entrei, não sei, a mesma porta amarela, o mesmo jasmim, o mesmo jardim. Porque sempre falta uma palavra, depois de 40, 50, 60 anos, não sei. Sempre faltará uma palavra.

Ela disse que ouviu dizer de minha vida, sim. De mulheres, de famílias. Mentira. Que eu tive filhos. Mentira. Que eu tentei me matar. Mentira. Mesmo a morte eu esperava morrer com ela. Todo tempo havia esperança, havia. Esperança. Eu tinha pressa, depois de 50 anos eu tinha pressa. Ela me mandou sentar, tomar um café. Não quis. Passou a vontade, como passageira. Esperou eu falar. Pois é. E só depois de 50 anos, 50 anos ou mais, olhando para o fundo da boca, das mãos, dos olhos dela, no mesmo portão, porta amarela, com o cheiro de jasmim, eu disse a palavra, a palavra que faltava, que sempre falta uma palavra.

Falta.

outubro, 2005
Marcelino Freire nasceu em Sertânia-PE, no ano de 1967. Vive em São Paulo, vindo do Recife, desde 1991. É autor, entre outros, dos livros eraOdito (aforismos, 2ª edição, 2002) e BaléRalé (contos, 2003), ambos publicados pela Ateliê Editorial. Em 2004, idealizou e organizou a antologia Os cem menores contos brasileiros do século. Em 2005, lançou Contos Negreiros, seu primeiro livro pela editora Record. O conto "Belinha", acima, foi extraído do livro Angu de sangue (contos, 2000), também publicado pela Ateliê Editorial. Mais informações sobre autor e obra no eraOdito e aqui.