29/04/2007

BRIGA

Depois da pesada confusão ficou um silêncio mórbido.
Nem vencido nem vencedor.
Um cachorro assustado dormindo com medo.
A tensão muda espalhando rabiscos nas paredes e estragando os quadros.
Piano cerrado.

Da estória da briga, apenas estrias tristes na pele.
Nem um pio
nem uma prece
Nem um pranto.

Apenas silêncio aterrador
Transformando a casa
num túmulo de mortos-vivos.


EDNALDO TORRES FELÍCIO
29/04/06

Fernando Pessoa (Alvaro de Campos)

      TABACARIA

    Não sou nada.
    Nunca serei nada.
    Não posso querer ser nada.
    À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

    Janelas do meu quarto,
    Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
    (E se soubessem quem é, o que saberiam?),
    Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
    Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
    Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
    Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
    Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
    Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

    Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
    Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
    E não tivesse mais irmandade com as coisas
    Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
    A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
    De dentro da minha cabeça,
    E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

    Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
    Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
    À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
    E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

    Falhei em tudo.
    Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
    A aprendizagem que me deram,
    Desci dela pela janela das traseiras da casa.
    Fui até ao campo com grandes propósitos.
    Mas lá encontrei só ervas e árvores,
    E quando havia gente era igual à outra.
    Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

    Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
    Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
    E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
    Gênio? Neste momento
    Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
    E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
    Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
    Não, não creio em mim.
    Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
    Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
    Não, nem em mim...
    Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
    Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
    Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
    Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
    E quem sabe se realizáveis,
    Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
    O mundo é para quem nasce para o conquistar
    E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
    Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
    Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
    Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
    Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
    Ainda que não more nela;
    Serei sempre o que não nasceu para isso;
    Serei sempre só o que tinha qualidades;
    Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
    E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
    E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
    Crer em mim? Não, nem em nada.
    Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
    O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
    E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
    Escravos cardíacos das estrelas,
    Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
    Mas acordamos e ele é opaco,
    Levantamo-nos e ele é alheio,
    Saímos de casa e ele é a terra inteira,
    Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

    (Come chocolates, pequena;
    Come chocolates!
    Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
    Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
    Come, pequena suja, come!
    Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
    Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
    Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

    Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
    A caligrafia rápida destes versos,
    Pórtico partido para o Impossível.
    Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
    Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
    A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
    E fico em casa sem camisa.

    (Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
    Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
    Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
    Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
    Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
    Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
    Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
    Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
    Meu coração é um balde despejado.
    Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
    A mim mesmo e não encontro nada.
    Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
    Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
    Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
    Vejo os cães que também existem,
    E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
    E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

    Vivi, estudei, amei e até cri,
    E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
    Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
    E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
    (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
    Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
    E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

    Fiz de mim o que não soube
    E o que podia fazer de mim não o fiz.
    O dominó que vesti era errado.
    Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
    Quando quis tirar a máscara,
    Estava pegada à cara.
    Quando a tirei e me vi ao espelho,
    Já tinha envelhecido.
    Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
    Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
    Como um cão tolerado pela gerência
    Por ser inofensivo
    E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

    Essência musical dos meus versos inúteis,
    Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
    E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
    Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
    Como um tapete em que um bêbado tropeça
    Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

    Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
    Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
    E com o desconforto da alma mal-entendendo.
    Ele morrerá e eu morrerei.
    Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
    A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
    Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
    E a língua em que foram escritos os versos.
    Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
    Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
    Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

    Sempre uma coisa defronte da outra,
    Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
    Sempre o impossível tão estúpido como o real,
    Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
    Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

    Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
    E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
    Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
    E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

    Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
    E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
    Sigo o fumo como uma rota própria,
    E gozo, num momento sensitivo e competente,
    A libertação de todas as especulações
    E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

    Depois deito-me para trás na cadeira
    E continuo fumando.
    Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

    (Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
    Talvez fosse feliz.)
    Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
    O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
    Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
    (O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
    Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
    Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
    Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

    Álvaro de Campos, 15-1-1928

MONSTRO

Que espécie de monstro sou eu?
Um covarde. Deveria acabar logo comigo. Me enfiar no grande breu da morte e poupar os que amo do que eu sou.
Não tenho esperanças em relação a mim.
Não tenho não tenho e não tenho.
Não melhoro. Não aprendo, não apreendo.
Quando desperto e sou realmente o que sou fico na mais completa solidão e culpa.
Perdi meus sonhos. Perdi meu caminho.
O que eu quero pra mim daqui a tres anos? Não sei...
Não sei mais o que quero pra mim nem na próxima segunda feira!
Acordo, trabalho, me exponho e não tenho objetivo.
Carrego a vergonha de ser alimentado por quem eu deveria alimentar. Carrego o peso do fracasso. 32 anos e nenhum acerto. O que construí? O que deixarei?
Passarei meteórico e não deixarei rastros, senão alguns escombros.
Tinta queimada.
Andar sem direção ou esperança de um porto seguro. Andar sem destino.
Ah, como eu queria ser sozinho e não ter chance de magoar ninguém!
Não tenho coragem de me matar nem de continuar vivo.
Alienado, muleque, monstro.
Morto-vivo.

24/04/2007

um pouco de Mário Quintana...

Saibam: eu ia postar um poema triste pra caralho do Pablo Neruda chamado: "O menino perdido". Então pensei bem: vou é publicar Quintana e sua poesia cheia de ternura. É essa ternura que lhes ofereço, meus amigos e amigas. Bjos. Xô melancolia!!! Sampa, 5 e pouco da matina...


Mário Quintana


Bilhete


Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda

18/04/2007

continuemos nossa brincadeira - 5 visões

Olá!

Já escrevemos aqui nossas 5 lembranças olfativas, auditivas e tacteis. Quais seriam as 5 lembranças visuais que levaríamos para a eternidade, se apenas 5 pudessemos levar?
Essa é difícil!
Aqui vão as 5
- Minha filha recém-nascida, bailando no berçário
- O riso da minha esposa
- Golfinhos passeando perto do barco (em especial uma mamãe e seu bebê)
- Céu estrelado em São Tomé das Letras
- O mar de noite num dia frio de inverno (puta que medo!)

E vocês? Apenas 5 lembranças, 5 cenas, 5 visões... depois... o esquecimento...
;-)

lembranças olfativas de um assassino

Olá.
Após o novo massacre nos EUA, com aquele maluco que matou gente pacas na universidade, o jornalista Roberto Cabrine, da Bandeirantes, intrevistou o "atirador do shopping" , o cara que matou gente pra cacete num cimena em São Paulo.
Lembram-se dele? Em 1999, na sala 6 do cinema do MORUMBI SHOPPING, durante a sessão do filme CLUBE DA LUTA, lá pelo meio do filme, um maluco foi ao banheiro e voltou atirando na platéia. No final ficaram 3 mortos e 4 feridos. Seriam mais, se o maluco não fosse imobilizado por outras pessoas. Hoje cumpre pena num presídio de Sampa.
Pois bem, segue uma livre transcrição de um trecho da entrevista veiculada no JORNAL DA BAND:

"CABRINE: Você viu os corpos no chão?
aSSASSINO: Eu não lembro de muita coisa daquele dia. Lembro assim... Do barulho dos tiros... e do cheiro.
CABRINE: Cheiro? Que cheiro?
aSSASSINO: (silêncio) Eu senti cheiro de pólvora, de pipoca e de sangue."

Lembrei na hora da minha/nossa brincadeira neste blog sobre memórias olfativas. Algumas belíssimas tais como "cheiro da camisa de meu pai" ou "cheiro de suor de uma noite de amor" ou ainda "cheiro do travesseiro da minha mãe", entre tantos comentários deliciosos que meus amigos dividiram conosco.
O assassino (com "a" minúsculo, ele não merece um a maiúsculo, nem mesmo seu nome citado em meu blog), o assassino lembra-se de pólvora, pipocas e sangue...
Cada um guarda na memória as lembranças que pôde reter de acordo com o que viveu.
Postei esse texto porque tenho que dizer que adimiro e sou grato a todos que escreveram suas memórias (olfativas, gustativas, tacteis e auditivas) aqui. E pra dizer que a brincadeira vai continuar. No post acima, a brincadeira será com nossas lembranças visuais. Sei que serei brincadado com mais poesias de vocês e suas lindas e geniais lembranças.
Embora seja gay pacas, não me furto a mandar um beijo na alma de todos vocês.
Obrigado por existirem em minha vida.
Reflitamos, ainda assim, sobre a "pólvora, pipoca e sangue" e torçamos para que sejam mais ricas nossas lembranças.
Beijos nas minas, abraços nos manos.

15/04/2007

MENINA DA AUGUSTA

Olá!

Faz tempo que eu não posto, né?
Pois bem, a Rua Augusta em Sampa é conhecida pela Boemia e pelas garotas de programa que trabalham noite adentro. Apesar disso, é um endereço elegante da cidade, com cinemas de arte, teatro, bares e restaurantes descolados, lojas caras e raridades, como sebos de discos, lojas especializadas em botas ou chapéus.
Todos os dias à meia noite passeio com meu cachorro por esse mundo. Fiz esse poema após voltar pro meu apartamento, numa noite dessas. Espero que vocês gostem.
;-)

MENINAS DA AUGUSTA


Meninas na Augusta brincam de putas
Se mastigam em chicletes, tietes.

Meninas na Augusta brincam injustas
Cobram beijos e afagos, diabos!

Meninas na Augusta sob luz que ofusca
Beijinhos e bundinhas, calcinhas.

Pára um carro: passa a mão
Beija a boca, enche a cara. E vai...

Eu passo e vejo tudo,
Passeando à noite com meu cachorro e minha poesia.

Meninas da Augusta...
Putas?

Sejamos seus filhos
Repousemos tranqüilos.

E que o manto negro da Noite como chuva fina
Proteja o trabalho de nossas meninas.

Na Augusta.
Na Vida.

EDNALDO TORRES FELÍCIO
10/04/07
00:45hs