30/11/2007

JOÃO CABRAL DE MELLO NETO - Morte e Vida Severina



ENCONTRA DOIS HOMENS CARREGANDO
UM DEFUNTO NUMA REDE, AOS GRITOS DE "Ó IRMÃOS DAS ALMAS! IRMÃOS DAS ALMAS! NÃO FUI EU QUEM MATEI NÃO!"


— A quem estais carregando,
irmãos das almas,
embrulhado nessa rede?
dizei que eu saiba.

— A um defunto de nada,
irmão das almas,
que há muitas horas viaja
à sua morada.

— E sabeis quem era ele,
irmãos das almas,
sabeis como ele se chama
ou se chamava?

— Severino Lavrador,
irmão das almas,
Severino Lavrador,
mas já não lavra.

— E de onde que o estais trazendo,
irmãos das almas,
onde foi que começou
vossa jornada?

— Onde a caatinga é mais seca,
irmão das almas,
onde uma terra que não dá
nem planta brava.

— E foi morrida essa morte,
irmãos das almas,
essa foi morte morrida
ou foi matada?

— Até que não foi morrida,
irmão das almas,
esta foi morte matada,
numa emboscada.

— E o que guardava a emboscada,
irmão das almas
e com que foi que o mataram,
com faca ou bala?

— Este foi morto de bala,
irmão das almas,
mas garantido é de bala,
mais longe vara.

— E quem foi que o emboscou,
irmãos das almas,
quem contra ele soltou
essa ave-bala?

— Ali é difícil dizer,
irmão das almas,
sempre há uma bala voando
desocupada.

— E o que havia ele feito
irmãos das almas,
e o que havia ele feito
contra a tal pássara?

— Ter um hectares de terra,
irmão das almas,
de pedra e areia lavada
que cultivava.

— Mas que roças que ele tinha,
irmãos das almas
que podia ele plantar
na pedra avara?

— Nos magros lábios de areia,
irmão das almas,
os intervalos das pedras,
plantava palha.

— E era grande sua lavoura,
irmãos das almas,
lavoura de muitas covas,
tão cobiçada?

— Tinha somente dez quadras,
irmão das almas,
todas nos ombros da serra,
nenhuma várzea.

— Mas então por que o mataram,
irmãos das almas,
mas então por que o mataram
com espingarda?

— Queria mais espalhar-se,
irmão das almas,
queria voar mais livre
essa ave-bala.

— E agora o que passará,
irmãos das almas,
o que é que acontecerá
contra a espingarda?

— Mais campo tem para soltar,
irmão das almas,
tem mais onde fazer voar
as filhas-bala.

— E onde o levais a enterrar,
irmãos das almas,
com a semente do chumbo
que tem guardada?

— Ao cemitério de Torres,
irmão das almas,
que hoje se diz Toritama,
de madrugada.

— E poderei ajudar,
irmãos das almas?
vou passar por Toritama,
é minha estrada.

— Bem que poderá ajudar,
irmão das almas,
é irmão das almas quem ouve
nossa chamada.

— E um de nós pode voltar,
irmão das almas,
pode voltar daqui mesmo
para sua casa.

— Vou eu que a viagem é longa,
irmãos das almas,
é muito longa a viagem
e a serra é alta.

— Mais sorte tem o defunto
irmãos das almas,
pois já não fará na volta
a caminhada.

— Toritama não cai longe,
irmãos das almas,
seremos no campo santo
de madrugada.

— Partamos enquanto é noite
irmãos das almas,
que é o melhor lençol dos mortos
noite fechada.


5 comentários:

Patrícia disse...

interesting. =)

Patrícia disse...

interesting. =)

Luana Leide disse...

Eras, engraçado, as pessoas estão escrevendo demais sobre morte esses dias...
Sério, só hoje já li umas 5...

Apesar de não curtir muito esse tema, curti teu texto.
Curto e letal.. hahahahaha

Kisses

Petra Constantino disse...

Um blog cultural, filosófico... Ainda não é desta vez que o lerei na íntegra, mas confesso que seu blog nos convida a ficar e sabê-lo mais. Dessa forma,voltarei. Sucesso para você. Ah! bela escolha João Cabral. Nesse texto ele não falava de morte e sim de vida. Uma vida severina de uma gente severina que a vive além da vida.

♰ Anilorac Selas disse...

Interessante esse texto
como se fala de morte nele
mui bom